segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Desvairada

I
Não era possível entender como ela conseguia ser tão discreta e chamar tanta atenção. Era sempre mais do mesmo: um tênis sujo, uma calça velha e uma blusa escura. Toda de preto, os olhos maquiados e o cabelo descuidadosamente despenteado; invisível aos olhos sóbrios, talvez. No meio daquela escuridão seu rosto esbranquiçado reluzia e, porque não?, brilhava. Era a lua que tinha assumido forma de gente. Era a lua que lá no alto, cercada pelo negro céu, não se apagava. Era a lua: solitária, indecifrável, esburacada e cheia de luz.

II
Seu moço, uma bebida doce e quente, por gentileza. Para ver se essa noite meu pudor se esvai de vez. Poderia ser só mais um amanhecer no meu quarto, eu sei; e eu tentando fugir da claridade que insiste em se espremer pela cortina só para me atingir. Mas seu moço, me traz um copo d'água morna para eu tirar a minha vida pela boca, e pô-la para descansar.
Ela já não percebia o cheiro de mijo que vinha do lado esquerdo do bar, nem as risadas espalhafatosas que as pessoas, encorajadas pelo álcool, insistiam em dar. Não havia porque rir; ela sabia e os outros também. Todos com os seus assuntos urgentes e notícias importantes, e ela ali contando para o copo esvaziado pela boca ainda seca sobre as suas dores. Talvez até a olhassem, curiosos. Também não havia nada de impressionável ou encantador. Ela apenas contemplava todas as palavras que lhe subiam do peito, do útero, do estômago vazio e de algumas outras entranhas. Tudo, espremido em um sorriso direcionado a um gato que cruzava a rua; um sorriso que mal mostrava os dentes. Porque não era nada assim feliz ou alegre, porque não existia ninguém que pudesse ouvir o que talvez fosse.
Levantou-se com o mesmo sorriso bordado na cara, agora talvez um pouco mais enrugado. O garçom rudemente aceitou o dinheiro e só então reparou que as notas estavam amassadas ou enroladas como, para ela, era de se esperar. No caminho de volta pra casa tudo parecia tentar fazer parte dela, convidativamente. As luzes em neon colorido dos puteiros; as pessoas arrumadas que sorriem e bebem e fumam e sorriem; os homens e mulheres em carrões que buzinam em busca de companhia e/ou diversão. Infinitas possibilidades cordialmente recusadas com um “não, obrigada; já está suficientemente ruim assim”.

III
O viaduto parecia deitar-se sobre a avenida, grotesco e preguiçoso como se estivesse desde sempre ali. Ele era cortado por uma faixa de concreto em que era possível caminhar. Nos dias de domingo toda a avenida fechava para aos carros e passava a ser de uso dos pedestres. Ela fedia a fezes de mendigos e dela dava para ouvir o barulho de carros e caminhões embaixo. As pessoas caminhavam lentamente, cercadas por pressa; os prédios envolta estavam todos sujos pelo tempo. Todos estavam.
Uma cadela usando um vestido rosa tremia de medo de todo o espaço que tinha para andar. O ar podre ia entupindo os pulmões da geração-saúde-CO2-no-café-da-manhã. Ela teve uma imensa vontade de dizer-lhes que estavam todos mortos.
Permaneceu na avenida após ter rodado boa parte do centro daquela (atro)cidade; caminhava bem perto da marquise e olhava os carros passando por baixo. Lembrou-se da outra avenida em frente à praia, dos apartamentos um-por-andar, dos gringos vermelhos com sungas pequenas, os peitos musculosos balançando enquanto corriam. A maior semelhança, contudo, estava nas pessoas. Aonde que que elas estivessem, sempre tentavam agir da mesma forma, condicionadas e adestradas a um podre padrão.
E ela ali, e a marquise, e os automóveis na pista de baixo. Seria simples demais acabar com tudo dessa vez, como a louca suicida que ela não conseguia deixar de ser. Mas lembrou-se de uma ligação no meio da noite, de alguém que talvez se importasse e que havia pedido para ela não desistir. “Não desistir”, repetiu afastando-se com lentos passos para trás. Era um motivo contra mil outros; um motivo buscado às pressas e que talvez nem devesse existir.
Algumas pessoas a olhavam, às vezes com repugnância ou pena ou indiferença. A maioria passava direto já entretidos e ocupados demais com o próprio umbigo. Olhavam-a rapidamente, assim pra ela não perceber; porque estava suja, bêbada, drogada e sem dormir enquanto todos eram supersaudáveis com suas toneladas de CO2 nos pulmões.
Estaticamente apavorada: era um pavor trancado que só se expressava nas pupilas dilatadas por pânico e algo mais. “Olhem, isto foi o que o amor me fez” - ela pensava enquanto agradecia a cada uma daquelas pessoas por não a amarem. Juntava quebra-cabeças incompletáveis, ligando peças totalmente distintas para tentar, mais uma vez, se preencher. Catava as gotas do que ainda poderia a encantar nos cantos escondidos das pessoas: sem sucesso. Dedicava, então, todos os seus esforços aos movimentos da mão:

por favor: eu não quero mais!
alguém me ensina como é que faço
para que seja
verdadeiro
e
sincero.

Um comentário:

  1. Quero ser a certeza da ligação, talvez impertinente e um pouco iludida assim como a razão pra não seguir o caminho que as marquises indicam, tão gentis e solícitas, mas quero ser sempre esse sussurro desesperado de algo maior, de dentro e profundo, aquilo que esquecemos porque os olhos apáticos também o fizeram, aquilo que rabiscamos insistentemente, espero que não infantis - palpita o medo- por aí, nos papéis insuficientes, nas paredes, nas roupas, nos corpos, nos corações: resista.

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